i.2. A Alma Feita de Átomos

Em minha opinião, a derrota mais grave que a teoria sofreu, e que a condenou a se transformar em “Bela-Adormecida” por muitos séculos, era devido à sua extensão à alma. A alma foi considerada como composta de átomos materiais, particularmente pequenos e de grande mobilidade, espalhando-se provavelmente por todo o corpo e desenvolvendo todas as suas funções. Isso é triste, porque esta explicação sobre a alma afastou da teoria atomista os melhores e mais profundos pensadores dos séculos seguintes. Nós, entretanto, devemos ter cuidado para não fazer um exame demasiado severo de Demócrito. É apenas um pequeno erro para um homem cuja profunda compreensão da teoria do conhecimento provarei agora. Ele assumiu, junto com a teoria atômica, a velha crença, ancorada firmemente nas línguas até hoje, de que a alma é respiração. Todas as palavras antigas para a alma significavam originalmente o ar ou a respiração:, , spiritus (Latim), anima (Latim), athman (Sânscrito) (nas línguas modernas: expirar, animado, inanimado, psicologia, etc.). Bem, essa respiração é ar, e o ar é composto de átomos e, assim, a alma é composta de átomos. É um atalho direto para o problema metafísico central, que ainda não foi resolvido até hoje. (Veja a discussão primorosa no livro de Charles Sherrington (1) “O Homem na sua Natureza”).
Isto teve uma conseqüência terrível, que assombrou os pensadores durante muitos séculos e que, de forma um pouco alterada, ainda hoje nos confunde e desafia. O mundo-modelo, consistindo de átomos e espaço vazio, implementa o postulado básico de que a Natureza é compreensível, contanto que, em qualquer instante, o movimento subseqüente dos átomos possa ser determinado pela suas posições e velocidades atuais. Assim, a configuração num determinado instante engendra a necessidade da configuração seguinte, e esta da próxima, e assim por diante, para sempre. Tudo é determinado estritamente pela condição inicial. Fica difícil entender como esta teoria poderia incluir o comportamento de seres vivos, inclusive nós, que somos cientes de poder escolher, em grande medida, os movimentos de nosso corpo pelo livre arbítrio da nossa mente. Se, então, esta mente ou alma é ela mesma composta de átomos que se movem de maneira determinista, não parece sobrar espaço para a ética ou para o comportamento moral. Nós somos compelidos, pelas leis da Física, a fazer exatamente, em cada momento, apenas a coisa que nós deveríamos fazer. Qual o sentido em se deliberar sobre o que é certo ou errado? Existe lugar para a lei moral, se a lei natural é superior e a frustra inteiramente?
Esta antinomia (2) continua sem solução até hoje, como era há vinte e três séculos atrás. Mesmo assim nós podemos analisar a proposição de Demócrito, separando-a numa parte muito crível e outra absurda. Ele admitiu:
(a) que o comportamento de todos os átomos dentro de um corpo vivo é determinado pelas leis físicas da Natureza, e;
(b) que alguns destes átomos compõem o que nós chamamos de mente ou alma.
A seu favor, considero que ele se manteve fiel à proposição (a), mesmo que isso implique em uma antinomia, com ou sem a proposição (b). Certamente, se você admitir (a), o movimento de seu corpo é predeterminado, mas você não esclarece sobre os sentimentos que fazem que você o mova, seja qual for a sua opinião sobre o que é a mente.
A proposição (b) é verdadeiramente absurda.

Figura.i.b. – Heráclito e Democrito.