i.4. O Retorno do Atomismo

Retornemos às perguntas históricas levantadas no começo deste capítulo, onde se disse que elas significavam muito mais do que somente o interesse histórico. Nós estamos em frente de um dos casos mais fascinantes da História das Idéias. O ponto impressionante é o seguinte: das vidas e dos escritos de Gassendi e de Descartes, que introduziram o atomismo na ciência moderna, nós sabemos, como fato histórico real, que, ao assim fazerem, estavam inteiramente cientes de adotarem a teoria de filósofos clássicos cujos escritos eles diligentemente estudaram. Mais importante: todas as características básicas da teoria antiga sobreviveram na teoria atomística contemporânea. Muito melhorada, trabalhada e burilada, mas essencialmente – usando o padrão do filósofo da natureza e não a visão míope do especialista – a mesma. Por outro lado, nós sabemos que, nem uma ínfima parte da evidência experimental que um físico moderno tem para sustentar essas características básicas, era do conhecimento de Demócrito ou de Gassendi.
Sempre que esse tipo de coisa acontece, podem-se levantar duas hipóteses. A primeira é que os pensadores gregos fizeram uma ótima suposição que se provou, mais tarde, correta. A segunda é que o padrão de pensamento em questão não está baseado exclusivamente em evidências recentemente descobertas, como os pensadores modernos acreditam, mas na conjunção de fatos muito mais simples, sabidos antes, e nas estruturas a priori, ou mesmo numa inclinação natural do intelecto humano.
Na eventualidade de a segunda alternativa ser provada, isso será de uma importância capital. Não é necessário, óbvio, que isso, se absolutamente certo, nos induza a abandonar a idéia do atomismo como uma mera ficção de nossa mente. Mas ela nos levará a uma introspecção mais profunda sobre a origem e a natureza da visualização feita pela nossa mente. Essas considerações nos incitam a investigar, se possível, como os filósofos clássicos foram conduzidos à sua concepção sobre átomos imutáveis e o vácuo?
Por tudo que sei, não existe nenhuma pista para nos guiar. Hoje em dia, se nós, ou qualquer pessoa, emitimos opiniões científicas próprias ou de terceiros, nós nos sentimos obrigados a explicar porque nós ou eles possuem essas idéias. O mero fato de que alguém acredite nisto ou naquilo, sem motivação, é desinteressante para nós.
Essa não era a prática mais comum na Antiguidade. Os textos doxográficos (1) simplesmente relatam, por exemplo, que “Demócrito considerava…”. É notável, partindo do nosso ponto de vista contemporâneo, que Demócrito, ele mesmo, considerasse sua reflexão como uma criação do intelecto. Isso pode ser visto no fragmento 125, apresentado no final do Tópico 6, e também no fragmento 11 do mesmo Tópico, sobre a distinção entre os dois tipos de veículos para se obter conhecimento – o genuíno e o obscuro. O último são os sentidos. Eles, os sentidos, nos deixam na mão quando nós tentamos penetrar em regiões muito pequenas do espaço. Então o método genuíno de se obter o conhecimento, apoiado num órgão refinado do pensamento, vem em nosso socorro. Que isso se refere inter alia (2) com a teoria atômica, é óbvio, embora nenhum fragmento existente o mencione explicitamente.
O que guiou o refinado órgão de pensamento de Demócrito a produzir o conceito de átomo?

Figura i .d – Pierre Gassendi e René Descartes.