i.1. As Idéias de Demócrito


Capítulo do Livro “A Natureza e os Gregos” de Erwin Schrödinger, publicado pela primeira vez em 1954, pela editora da Universidade de Cambridge (Inglaterra). A Tradução foi feita da edição de 1996, ).“A Natureza e os Gregos” e “Ciência e Humanismo”.
Erwin Schrödinger(1887-1961) foi um físico austríaco com contribuições fundamentais para a Teoria da Mecânica Quântica e, porisso, recebeu o prêmio Nobel de Física de 1933.

A antiga teoria atômica, de Leucipo (1) e Demócrito (2), é a verdadeira precursora do atomismo moderno?
Essa pergunta foi feita freqüentemente e opiniões muito diferentes foram registradas. Gomperz (3), Cournot (4), Bertrand Russell (5), J. Burnet (6) dizem: Sim!. Enquanto Benjamin Farrington (7) diz que é “de alguma maneira” e que as duas teorias têm muito em comum. Charles Sherrington (8) acha que não, apontando o caráter puramente qualitativo do antigo atomismo e o fato de que sua idéia básica, corporificada na palavra “átomo” (que não pode ser cortado nem dividido), enfraquece o significado da palavra “átomo”. Não é do meu conhecimento que algum estudioso dos clássicos tenha esse veredito negativo.
Quando um cientista trata do tema, ele observará que é a Química – e não a Física – o domínio apropriado das noções sobre átomos e moléculas. Mencionará o nome de Dalton (9) (nascido em 1766) e omitirá, neste contexto, o nome de Gassendi (10) (nascido em 1592). Foi este último quem definitivamente reintroduziu o atomismo na ciência moderna. Gassendi chegou até o Atomismo após estudar a substancial quantidade de escritos de Epicuro (11) (nascido ao redor 341 a. C.), que adotou a teoria de Demócrito, de quem somente pequenos fragmentos originais chegaram até nós. É notável que na Química, após o monumental desenvolvimento que se seguiu às descobertas de Lavoisier (12) e Dalton, um forte movimento (“energeticistas”), dirigido por Wilhelm Ostwald (13) (1853-1932), e apoiado pelas posições de Ernst Mach (14) (1838-1916), levantasse, no fim do século XIX, a proposta de se abandonar o atomismo. Dizia-se então que o atomismo não era necessário para a Química e deveria ser abandonado como hipótese improvável e sem nenhuma prova experimental.
A questão a respeito da origem do atomismo antigo e sua conexão com a teoria moderna é de interesse atual e muito mais do que um fato puramente histórico. Nós retornaremos a ela. Primeiramente, vamos apresentar os principais pontos das idéias de Demócrito. São eles:
(I) Os átomos, de tão pequenos, são invisíveis. São feitos do mesmo material ou natureza (φνσις), mas há uma multitude enorme de formas e de tamanhos, e isto é sua principal propriedade. Os átomos são impenetráveis e agem pelo contato direto, empurrando e girando uns aos outros. Assim, as mais variadas formas de agregação e ligação de átomos, iguais ou diferentes, produzem a variedade infinita de corpos materiais, como nós os observamos, em sua múltipla interação entre si. O espaço fora deles é vazio – uma idéia que parece natural para nós – mas que era sujeito à grande controvérsia na Antiguidade, porque muitos filósofos concluíram que a coisa que não é, não pode ser ou existir ; isto quer dizer que não pode haver o espaço vazio!
(II) Os átomos estão em perpétuo movimento e nós podemos concluir que este movimento é irregular e desordenadamente distribuído em todas as direções. Conclusão razoável para átomos que estão em movimento perpétuo, mesmo nos corpos que estão em repouso ou se movem a baixa velocidade. Demócrito indica explicitamente que no espaço vazio não há acima e abaixo, na frente ou atrás, nenhuma direção é privilegiada. O espaço vazio é isotrópico, nós diríamos hoje.
(III) Seu movimento contínuo persiste por si mesmo, não existe repouso. Essa descoberta, por suposição, da lei da inércia, deve ser considerada como um grande feito, pois ela contradiz claramente a experiência cotidiana. A Lei da Inércia foi restabelecida 2000 anos mais tarde por Galileu (15), que a deduziu pela engenhosa generalização de cuidadosas experiências com pêndulos e esferas rolando planos inclinados. No tempo de Demócrito isso não parecia de modo nenhum aceitável. Foi certamente difícil para Aristóteles (16), que considerava perpétuo apenas o movimento circular dos corpos celestiais que persistiria indefinidamente. Nos tempos atuais, nós diríamos que os átomos são dotados de massa inercial, que os fazem continuar seu movimento no espaço vazio e movimentar outros átomos que com eles colidirem.
(IV) O peso ou gravidade não eram considerados como uma propriedade primitiva dos átomos. Foi descrito, de uma maneira bastante engenhosa, que o movimento geral de um redemoinho fazia com que os átomos maiores e maciços tendessem para o centro, onde a velocidade rotacional é menor, enquanto que os átomos mais leves eram empurrados e jogados para longe do centro, para o espaço. Ao ler essa descrição, vem à mente uma centrífuga, embora nesta, naturalmente, o comportamento seja completamente o oposto, pois na centrífuga os corpos mais pesados são empurrados para fora, enquanto que os mais leves tendem para o centro. Por outro lado, se Demócrito tivesse algum dia feito uma xícara de chá e o agitado com uma colher, ele observaria que as folhas do chá se recolheriam no centro do copo – um excelente exemplo para ilustrar sua teoria. A verdade aqui é, novamente, o oposto, pois o cisalhamento é mais forte no meio do que próximo às paredes da xícara, pois estas atuam no sentido de frear o movimento. O que mais nos espanta é: alguém que relaciona a idéia de gravidade a um redemoinho contínuo sugeriria, automaticamente, um modelo de mundo de simetria esférica, e assim uma terra esférica. Mas não foi este o caso: Demócrito manteve-se, de forma inconsistente, fiel ao modelo de uma Terra em formato de tamborim; e continuou a considerar as revoluções diárias dos corpos celestiais como reais, enquanto que a Terra-tamborim residia num colchão de ar. Talvez a repugnância que ele tinha pelas bobagens dos Pitagóricos (17) e Eleáticos (18) levava-o a rejeitar qualquer teoria por eles proposta.

Figura i.a -Erwin Schrödinger (1887-1961). Físico austríaco, prêmio Nobel de Física de 1933.